Canto do Conto Secreto

Pensamentos, Sentimentos, Atitudes e tudo o que nos rodeia e pode ser escrito numa combinação de meia-dúzia de palavras

Sunday, May 06, 2007

Adiar...

Sinto o cheiro de um novo dia. Resolvo percorrer as ruas com os pássaros na sua barulheira matutina a importunarem o meu despertar ainda meio letárgico. Numa pequena ruela mais escondida encontro o café da D.Alice. Os anos passaram e tudo permanecia sempre na mesma. Na D.Alice apenas se salientava o aumento de rugas no rosto. Após os cumprimentos da praxe, reparo num homem cabisbaixo que se encontrava no canto a ler o jornal. Observando bem a cara, lembro-me de quem era. O Sr. Francisco. “Oh menina, sente-se aqui que já não a vejo há muitos anos!”. Sentei-me. Aquele pobre homem transpirava ânsia de viver. Aquele homem procurava por todos os cantos todos os pequenos nichos de carinho que pudesse encontrar. Após os discursos da praxe, do que faço ou deixo de fazer na vida, o Sr. Francisco lá me começa a contar a vida dele. Pelo que ia ouvindo, tudo se podia resumir a uma palavra, ADIAR. Adiar o amor, adiar a vida… No fim, questionei-me de tudo o que perco por adiar.


Não pagar pequenas dívidas porque há tempo e agora é uma maçada.

Não tratar de assuntos burocráticos porque há tempo e agora é uma maçada.

Não limpar a casa porque há tempo e agora é uma maçada.

Não lavar a roupa porque há tempo e agora é uma maçada.

Não alimentar o gato porque há tempo e agora é uma maçada.

Não tratar de mim porque há tempo e agora é uma maçada.

Não resolver pequenos atritos diários porque há tempo e agora é uma maçada.

Não escrever uma carta a um amigo porque há tempo e agora é uma maçada.

Não telefonar a um amigo porque há tempo e agora é uma maçada.

Não dizer amo-te a alguém especial porque há tempo e agora é uma maçada.

O tempo que se perde no adiar. O que se perde no adiar. Em resumo, a vida. Desleixo, irresponsabilidade ou preguiça?

À noite de volta ao meu refúgio, encontro na minha caixinha secreta encarnada algo que me faz acreditar que é possível alterar o adiar para outra coisa. Vasculho e surge “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” de Camões:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
 
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
 
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
 
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

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